terça-feira, 9 de outubro de 2012

A bala de prata, que deveria matar Lula e o PT, pode ferir de morte o Estado de Direito.


STF e o “mensalão”: Decisão perigosa sem precedentes para a segurança do indivíduo



No Brasil, uma Justiça que se baseia em conjecturas e condena por presunção.

Gilberto de Souza, via Correio do Brasil

O julgamento da Ação Penal (AP) 470, no Supremo Tribunal Federal (STF), sob os holofotes de setores da mídia comprometidos com os mesmos interesses que mantiveram de pé uma das piores ditaduras já vividas na América Latina, vai muito além das cores fortes com as quais o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo conhecido como “mensalão”, tenta tingir a realidade ao contar uma história crível até, verossímil como os grandes romances, mas afastada das provas contidas nos autos. Se a compra de votos de parlamentares transitar em julgado na mais alta Corte de Justiça do País, com base nos votos consignados por guardiões da Constituição brasileira para que consigam dormir à noite, amparados na experiência de vida de cada um, ou ainda por não ser possível não se saber de algo que não foi dito, nem provado, nas investigações ao longo de quase uma década, a possível prisão do ex-ministro José Dirceu será a menor das consequências. A maior delas estará no risco em que viveremos, todos, diante de uma Justiça que se baseia em conjecturas e condena por presunção.

A repercussão será devastadora se o Supremo materializar sem uma prova sequer, como constatou o revisor da AP 470, ministro Ricardo Lewandowski, os piores fantasmas da imaginária conspiração comunista mais barburda de que já se teve notícia, para perpetuar no poder o grupo liderado por aquele líder sindicalista, Luiz Inácio Lula da Silva, ligado aos ex-guerrilheiros Daniel e Luiza. É aí que começam as incongruências. Em primeiro lugar, os livros de História do Brasil precisarão contar que a tentativa do suposto esquema de financiamento da esquerda radical teve seu Joaquim Silvério dos Reis no ex-deputado de extrema-direita Roberto Jefferson. Depois, que todas as votações na Câmara dos Deputados e no Senado, durante o período de vigência do esquema do “mensalão”, tiveram de ser anuladas por vício de origem, o que desmoralizará de forma indelével o Poder Legislativo nacional. E por último, embora não menos importante, nenhuma prova foi exigida no corpo do processo para que os réus seguissem às galés. O mais grave, porém, estará à frente, com o estabelecimento da jurisprudência.

A partir de então, lá no futuro, qualquer juiz de primeira instância, diante de uma denúncia na paróquia, transformada em processo com base naquela fofoca da D. Candinha que ganhou as manchetes da Folha de Mato Dentro, considerada muito plausível segundo a experiência de vida da comunidade conservadora local, o magistrado condenará o acusado que, por coincidência, era desafeto do dono do jornal e da revista que ora lhe conferem superpoderes de herói na pequena, aprazível e imaginária Gotham City. Ainda assim, sem um pingo de culpa por rasgar séculos de lutas e conquistas do indivíduo, colocará a cabeça no travesseiro para uma boa noite de sono. Ao miserável, ainda bem, será possível recorrer da sentença à Corte imediatamente superior, expediente negado aos réus desta ação no STF. Mas, se tal situação hipotética soa como absurdo, o pior na realidade é a sensação que passará a reinar no país, a de que o impensável integra o cotidiano. Ao abandonar o marco de segurança mínima dos direitos individuais, que é a exigência das provas contidas nos autos para que alguém seja condenado à pena privativa de liberdade, alguns integrantes do Tribunal mais importante do país poderão viver no sossego de suas consciências, mas terão transformado em pesadelo a vida de toda uma nação.

Uma vez aceso o estopim da bomba armada por Carlos Augusto Ramos, o contraventor Carlinhos Cachoeira, que explodiu no bolso daquele funcionário dos Correios, junto com o pacotinho de R$3 mil, nada mais seguro para o alvo primário das investigações do que se misturar à multidão e acusar o maior número possível de pares na Câmara dos Deputados de se vender ao esquema urdido por comunistas sanguinários instalados no poder. A Igreja se arrepia. A Casa Grande desfia o relho. As condições para um novo golpe de Estado no Brasil se apresentam. Mas a tentativa falha porque o presidente da República detinha, à época, os maiores índices de aprovação jamais vistos na história desse país. Paciência. Teriam nova oportunidade mais à frente, no julgamento do “mensalão”.

Os autores da ópera bufa que criava a figura da compra de consciência dos parlamentares haviam plantado a semente transgênica no relatório da PGR. Pasmem. O esquema, disseram, visava a aprovação de duas reformas absurdamente importantes para a implantação do stalinismo no Brasil: da Previdência e a Lei de Falências. Como toda história mal contada, faltam os fundamentos mais pueris. Fossem os textos de ambas um avanço no campo socialista, capazes de abrir caminho para a implantação do comunismo na América do Sul, seria possível apontar o dedo longo dos conservadores na direção do Planalto. Mas, ao contrário, da dissidência do Partido dos Trabalhadores, acusado de manobrar alguns graus à direita, nasceu o Partido do Socialismo e Liberdade (PSOL), integrado por parlamentares insatisfeitos, principalmente, com a alteração no regime previdenciário do País. Esse mesmo texto recebeu o apoio de partidos da oposição, pelas mesmas razões. Se alguém vendeu algo nesse episódio, não foi o voto.

O veneno destilado pela Procuradoria Geral da República (PGR) não foi suficiente para inocular todo o processo. Com isso, parece que todos concordam. Ainda assim, engolido de um trago só pela relatoria, viu-se transformada em lenda a mais pura e simples bandalheira. Ainda que vultoso, trata-se do comezinho furto aos cofres públicos por uma fenda aberta pela quadrilha do então publicitário Marcos Valério, experimentado nessas lides desde o mensalão mineiro. Este transcorreu sem falhas, a ponto de nenhum tucano do bando ter experimentado, até hoje, o alpiste na gaiola. Mas, ao tornar a história um fato, sem que as provas contidas nos autos embasassem a argumentação fantasiosa e eletrizante, quase uma novela das 8, estão prestes a lançar o país em um abismo jurídico sem precedentes. Parecem desconhecer que tal jurisprudência será capaz de atingir, indistintamente, a todo e qualquer cidadão deste país.

Ainda mais irresponsáveis são os donos dos jornais diários, revistas e redes de tevê que incensam um disparate de tal envergadura. Esses empresários viram no enredo outra chance de ouro para lustrar, com a língua, as botas do capital internacional que os sustentam. Ao tomar em vão o santo nome da liberdade de imprensa – sagrada e louvada por todo o sempre, salve, salve, amém – os grandes meios de comunicação aplicam seus poderes, imensos, de forma a encostar na parede, de um lado, o governo da presidenta Dilma Rousseff. Com isso, garantem recursos públicos bilionários em contratos de publicidade para seguir mais fortes no encabrestamento do Estado. E, de outro, o Poder Judiciário. Este último parece ser ainda mais simples de manobrar. Basta conceder algumas fotos nas capas, umas campanhas de marketing nas redes sociais e aplausos em aviões e restaurantes para acender o imenso braseiro do ego de alguns magistrados. Assim, conseguem sonhar com carneirinhos, acreditar em contos de fadas e dispensar as provas imprescindíveis para que um cidadão seja encarcerado.

Em nome de seus próprios interesses, e apenas em nome deles, sem pensar nas consequências do ato prestes a ser praticado, parcela considerável da elite puxa o gatilho de uma arma carregada de ódios e mágoas na direção da própria têmpora. Uma vez disparada, a bala de prata que deveria matar o “sapo barbudo” e exterminar os “petralhas” estará pronta a ferir de morte o Estado de Direito e a segurança individual de todos os brasileiros.

Gilberto de Souza é jornalista, editor-chefe do Correio do Brasil.

2 comentários:

  1. Gilberto de Souza, você escreve muito bem. Queria eu escrever assim.

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  2. Belo texto, correto, rico e inteligente. Quero mais.

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