quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Dilma não é Lula de saias. Retrospectivas e perspectivas III

Reproduzidos do Amalgama (http://www.amalgama.blog.br/)

As relações Brasil-Cuba no governo Dilma

-- Raúl Castro --
por Hugo Albuquerque
Cuba e Brasil nutrem uma relação mais profunda do que se pode supor a uma primeira vista. A ilha caribenha, pela força de sua Revolução, foi e é fonte de inspiração para a esquerda latino-americana, inclusive para aquela que governa nosso país hoje – muito do que o PT é se deve à experiência cubana. Se hoje Cuba enfrenta uma grave crise e precisa desesperadamente negociar sua reinserção, em termos razoavelmente dignos, no sistema internacional – capitalista até a medula -, o que coloca o país na dependência especialmente de seus vizinhos latino-americanos (Brasil à frente), por outro lado, grande parte das mudanças ocorridas no continente nos últimos anos são tributárias da inspiração cubana. Não, as mudanças que aconteceram nos últimos anos na América Latina não deixariam de ter ocorrido, mas em um cenário imaginário no qual não tivesse ocorrido uma Revolução Cubana, certamente elas seriam bem diferentes, tanto menos na sua relação ao modelo de relacionamento entre instituições e a sociedade civil e tanto mais pela concepções de autonomia em relação aos países ricos e sua doutrina social. Cuba, portanto, não é um ferido que ficará sem socorro pela parte brasileira.
Enquanto o mundo em crise é desnudado pela enxurrada de informações fornecidas pelo fenômeno Wikileaks, o Brasil passa por uma transição tranquila, uma mera troca de guarda. Dilma Rousseff não irá, por óbvio, dar uma guinada em nada daquilo que herdou de seu mentor, o absurdamente popular Luís Inácio Lula da Silva, muito menos em matéria de política externa – afinal, aqui falamos da área mais bem sucedida de um governo bem sucedido dentro das limitações objetivas que encontrou. Nos últimos oito anos, o Brasil viu sua importância geopolítica crescer, além de ter obtido ganhos econômicos imediatos, frutos da política externa tocada por Celso Amorim que rompeu com a submissão ao eixo Atlântico e abraçou o Globo, passando a atuar em vários espaços com os cada vez mais variados atores globais, sempre norteado pela política Sul-Sul.
Em termos de América Latina, depois de anos de letargia, o governo brasileiro levou adiante a integração do Mercosul, planificou relações – depois do obscurantismo de Collor e a desídia de FHC – e ampliou seu espaço para o norte do continente, incluindo não apenas a Venezuela no bloco econômico como também sendo um dos agentes fundamentais no movimento de criação da Unasul. O Brasil faz uma política decididamente independente de Washington sem confrontá-lo diretamente, o que produziu um fenômeno curioso: se os americanos não controlam mais o Brasil, também não têm nele um inimigo declarado, o que deixa sua diplomacia em um permanente impasse, no qual dependem de Lula – dada a conjuntura de inúmeros governos anti-americanos na região -, mas não têm nele uma linha de transmissão imediata, o que os incomoda profundamente. Não há, no entanto, como prescindir do Brasil neste momento, nem como juntar todas as forças para confrontar o governo petista, muito embora até o mundo mineral saiba que sua política não seja aquela que o Departamento de Estado, sob o comando da inefável Hillary Clinton, sonhe ou precise.
Cuba, pelo seu lado, viveu um período caótico com o desmonte do bloco socialista. A questão transcende os subsídios que o país recebia dos soviéticos, afinal, do mesmo modo que era ajudada por Moscou, a ilha respondia servindo de ponto estratégico para a inteligência russa nas Américas e enviando tropas para ajudar aliados russos especialmente na África, em um momento no qual a União Soviética sonhava em intervir nas guerras de descolonização de modo a ver aliados seus no comando dos países africanos recém-emancipados – onde, não custa lembrar, os americanos apoiavam desde o colonialismo europeu até o regime do apartheid para impedir isso. O que se perdeu naquele momento foi todo um sistema de trocas econômicas, divisão de know-how e incorporação tecnológica – lembrando que a indústria cubana, tributária do modelo e do material americano, foi ferida gravemente com o embargo e que durante todos os anos 70, Havana realizava uma difícil e turbulenta passagem para o modelo industrial soviético enquanto enviava tropas para a África. Todo o esforço cubano – inclusive a superação de um momento conturbado no início dos anos 80, com a crise da dívida, que afetou também o país graças às dívidas que ele permanecia honrando com países capitalistas como o Canadá – foi por água abaixo com a hecatombe no Leste europeu, que lhe condenou ao isolamento. A depressão que se seguiu nos principais parceiros comerciais e estratégicos lhe arrastou junto.
A recuperação que começa a partir de meados dos anos 90 e que vai até o início da atual crise é positivo, embora o sistema político cubano permanecesse sem conseguir se renovar e superar as limitações do socialismo bolshevique – e se o padrão de vida dos anos 80 estava cada vez mais difícil de ser recuperado, por outro lado, a desigualdade social não deixava de crescer, ao passo que o sistema cubano não era mais capaz de gerir a economia crescente, que passava cada vez mais por um mercado negro no qual o capitalismo selvagem impera. Cuba, até o afastamento provisório de seu líder Fidel Castro em 2006, tinha um PIB per capta (em valores reais) girando em torno de US$ 4.000 – algo próximo aos grandes estados do nordeste brasileiro – e o paradoxo central do antigo mundo socialista: o assentamento sobre um paradigma de desenvolvimento e progresso semelhante ao do mundo capitalista, mas sem a mesma capacidade de produzir riqueza, convivendo, no entanto, com uma capacidade ímpar de transformar o produto econômico em qualidade de vida, fato expresso pela alta expectativa de vida – que se mantém até hoje – e por excelentes níveis educacionais.
A doença de Fidel não poderia ter deixado de causar profundas atribulações em um país cujo poder é profundamente centralizado. Tanto é que o seu afastamento provisório só se tornou permanente em 2008, quando seu irmão, Raúl, finalmente assumiu definitivamente como Presidente do Conselho de Estado. Para além das turbulências políticas e das dificuldades do sistema cubano se renovar e responder às demandas, o que veio logo em seguida não foi nada animador, a alta mundial dos preços de alimentos de 2007-08 – uma agitação que prenunciava o pior, a crise mundial subsequente, na qual importantes parceiros cubanos como a Venezuela e a Rússia foram acertados em cheio (e a China foi obrigada a se voltar para dentro), puseram fim aos anos de bonança da economia cubana. Agora, o cenário não é dos melhores e, inclusive, Raúl Castro anunciou há alguns meses uma série de reformas dentre as quais a demissão massiva de 500 mil funcionários públicos este ano, em um total de 4 milhões, algo cujo impacto é digno de uma terapia de choque semelhante àquela pela qual optaram parte dos países do Leste europeu (Rússia, inclusive), com resultados nada satisfatórios.
A oposição cubana, fortalecida desde os fins dos 80, se divide desde grupos liberais apoiados fortemente pelos EUA a grupos de inspiração social-democrata, como de Oswaldo Payá, por exemplo. A situação dos presos políticos, largamente veiculada na mídia internacional e fruto de debates acalorados no Brasil, é apenas a expressão perfeita e acabada de como regimes como o cubano nunca foram capazes de absorver o movimento das dissidências políticas no interior do seu corpo social. O sistema trabalha sobre paradigmas puramente racionalistas, cientificistas e burocráticos, incapazes de dirimir contradições mínimas que se operam no terreno da disputa pelo poder ou mesmo rearticulá-las como nas democracias representativas do Ocidente. O ponto é que a oposição cubana nunca conseguiu mobilizar as massas para nada e isso pouco se deve à repressão estatal – a História nos prova que isso jamais foi empecilho para que uma dissidência vicejasse -, mas nesse caso, tal oposição, ponderadas lá suas razões, está estruturada verticalmente – ou em certos casos até mesmo de fora para dentro da Ilha -, o que nunca teve apelo popular, do mesmo que a doutrina social do regime produziu, em seus êxitos, um mecanismo preventivo, abrandando aquilo que o sistema político em si não é capaz de responder.
A grande questão mesmo é como a relação do poder cubano com a sociedade civil se estruturará daqui por diante, ainda mais agora com o advento do grande exército de reserva, criado nos últimos meses à base da canetada de Raúl. Do mesmo modo que não é a coerção estatal o elemento capaz de, por si só, reduzir uma oposição a ponto de torná-la politicamente insignificante – como de fato não é no caso da oposição cubana -, não será ela também capaz de inibir as turbulências e revoltas anti-Estado que se anunciam – e nesse sentido, Raúl pode ter dado um tiro no pé, afinal, se o modelo russo, temperado com o humanismo ocidental e abrandado pelo sol caribenho do sistema cubano, nunca enfrentou problemas para se legitimar, é bom lembrar que em nenhum momento o Partido teve de lidar com a pressão política (e os imprevisíveis desdobramentos) causados pela existência de um exército de reserva. Suas reformas ainda passam longe de resolver o grave problema agrícola, de um país com uma boa quantidade de terras férteis que é terrivelmente dependente da importação de alimentos, tampouco de repensar a participação dos trabalhadores no planejamento da economia, erros elementares entre erros elementares cometidos pelas burocracias europeias orientais no século 20. Criar um exército de reserva para forçar um aumento da produtividade sem antes ter encaminhado mecanismos de reorganização da economia agrícola – em suma, ter garantido a segurança alimentar – é um movimento profundamente arriscado.
Nesse sentido, o Brasil, que já tem empresas suas operando no país, seja com a Petrobras com seus investimentos na parte cubana no Golfo do México ou com as construtoras na reforma de portos, é particularmente interessado na questão. O futuro governo Dilma deve seguir, talvez, uma doutrina mais rígida no que tocam os direitos humanos, mas a tonalidade a ser seguida é mesmo a do diálogo e do realismo político – e, a bem da verdade, há pouco o que se fazer sem entrar no improdutivo terreno da intervenção. A burocracia cubana perdeu bons negócios de inserção com os sul-americanos nos últimos anos, mas a tendência é de aproximação gradual com o próprio Mercosul. Mas tudo isso está longe de estar definido – enquanto passamos por aqui um momento de crescimento seguro e previsível, os próximos anos serão particularmente agitados em Cuba, o que deve mudar tudo.

Hugo Albuquerque 

Estudante de direito.

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