segunda-feira, 29 de março de 2010

A vitória da beleza

No CartaCapital, de Mino Carta
A vitória da beleza
26/03/2010 12:10:49
Nascido há cem anos, Akira Kurosawa usou plasticidade e escrita para expressar intenso humanismo

Um filme bastaria para apontar em Akira Kurosawa um cineasta raro. Nascido há cem anos em Tóquio, o diretor apresentou Juventude sem Arrependimento em 1946, depois, portanto, da derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial. A obra exemplificava seu modo de observar a sociedade. Ele evitava descrever uma circunstância sociopolítica, mas mostrava, com intensidade, a maneira como o ser humano a vivia. E assim analisava a existência daquela circunstância.

Juventude sem Arrependimento é um filme tão belo quanto o ar de liberdade que os japoneses começavam a respirar no pós-guerra, mas essa obra, integrante de estupenda filmografia, raramente se vê citada nos livros. Fora feita entre duas greves de funcionários da companhia cinematográfica Toho. Kurosawa, obrigado a filmá-la a partir de um roteiro reescrito, dizia não se orgulhar do resultado.

Contudo, em que pese a avaliação sincera de seu criador, expressa no livro Relato Autobiográfico (Estação Liberdade, 1990), o filme representou muito para o cinema. Kurosawa jurava não compreender a arte, conforme dissera a Steven Spielberg e George Lucas durante a cerimônia que lhe concedeu o Oscar honorário de 1990, oito anos antes de sua morte. A modéstia seria obrigatória àquele que os japoneses chamaram de “Imperador”. E, talvez, ele estivesse sendo sincero ao confessar uma surpreendente ignorância. Mas quantos teriam sabido, como Kurosawa, colocar a câmera no lugar certo?

Em Juventude sem Arrependimento, pela primeira vez, era possível vê-la correr com tanta alegria ao lado de um personagem que o espectador talvez pudesse sentir o próprio coração bater em concordância veloz. A sequência ocorre no início do filme, durante o qual o cameraman persegue, pela floresta primaveril, a menina do curso secundário vivida por Setsuko Hara. Ela é livre para brincar com seus pretendentes. Um pouco do que é o amor, mais sobre a paixão e seu florescer, e a sequência tecnicamente perfeita não parou de ser reproduzida a partir de então.

O segredo de Kurosawa mais bem guardado esteve em seu humanismo, na capacidade de procurar a dor, a esperança, o humor, a ética de uma situação, em personagens tão imensos quanto palpáveis, levados à cena com a intensidade de um romance e a beleza de um quadro antigo. Kurosawa amou o Ocidente retratado nos livros de William Shakespeare, nos filmes de John Ford e de Jean Renoir. E, ao olhar para o passado, ele o refez. Rashomon, de 1950, vencedor do Leão de Ouro em Veneza e tributário do cinema mudo, nasceu daquele belo Juventude sem Arrependimento, mas ganhou em explosão. Pela primeira vez, a câmera encarava diretamente o sol, e sob tal luz caminhava a força natural do ator-símbolo de Kurosawa, Toshiro Mifune.

De invenção em invenção caminhou o cineasta, antes de tudo um pintor, salvo pela arte durante o período escolar. Aos 7 anos, ele era separado dos colegas de classe e seu professor, de vez em quando, anotava: “Akira provavelmente não vai entender isso” . Ele se sentia humilhado por não ter a inteligência requerida para a idade. Um professor de artes despertou-a ao elogiar a tela na qual ele usara saliva para espalhar a cor. Kurosawa distraía-se com o próprio sentimento, chorava muito. Era arrastado à vida pelo pai que o queria nadador e jamais deixara de levá-lo aos filmes, ainda que representassem arte “menor”. O irmão quatro anos mais velho, morto prematuramente, dera-lhe as primeiras lições do que significava ser um homem e resistir.

Em Juventude sem Arrependimento, a corrida sensual da jovem pelo campo florido segue-se ao barulho de tiros que os estudantes ouvem no alto da colina. A juventude de Kurosawa não se arrepende, mas se cala. O diretor conta em sua autobiografia que o japonês da época rejeitava o jovem como uma criatura sensível. A protagonista cresce enquanto seu pai, um professor liberal, é demitido do trabalho. A menina toca Mussorgsky ao piano, desligada do que a vida lhe trará. Parece-se com aquele menino Kurosawa ou com o próprio país onde nascera. “Naquele tempo”, disse o diretor, “eu acreditava que o único modo de o Japão recomeçar seria iniciando por respeitar o ‘ser’, e esta ainda é minha crença. Quis mostrar uma mulher que fez exatamente isso.” E não será somente o amor a preocupá-la.

Baseado em fatos ocorridos na década anterior, o filme não se fixa, como seria de esperar, na história do professor alijado ou na trajetória de um de seus discípulos, que a menina persegue pela vida. Acusado de pertencer à esquerda, ele será morto. Esposa, ela viajará para dar as cinzas à sogra. E, no caminho, descobrirá a vocação campesina, que a ligará às raízes japonesas. Por narrar o filme a partir do personagem frágil, Kurosawa já teria feito uma descoberta. Mas na obra há outras revelações, como observa o crítico Donald Richie no livro Os Filmes de Akira Kurosawa (Brasiliense, 1984).

“Os muitos críticos que não viram Kurosawa entender as mulheres se esqueceram deste retrato soberbo, tão bom que tivemos de esperar por Jeanne Moreau em Jules e Jim (François Truffaut, 1962) e Anna Karina em Viver a Vida (Jean-Luc Godard, 1962) para encontrar algo ao menos comparável”, escreve Richie. “Também os que viram em Kurosawa um homem de esquerda nunca atentaram para o tratamento que ele dá ao proletariado nesse filme.” Para o crítico, o diretor japonês tem a força, ou será a ousadia, de dizer que os pobres não são necessariamente os melhores, que a vida de pobreza não é de forma alguma mais “real” que a vida de riqueza. E, por isso, ele se verá acusado de alienação política.

Os intensos mercenários que se movimentavam pelas várias câmeras de Os Sete Samurais, transformado em Sete Homens e Um Destino por John Sturges, em 1960, ou mesmo Rashomon, mais uma vez relido como western por um americano, Martin Ritt (Quatro Confissões, 1964), e Yojimbo, que Sergio Leone transformou em Por Um Punhado de Dólares (1964), percorrem a lama em que se deita o outsider social. Talvez Kurosawa jamais tenha se desligado desta visão a partir do submundo, universalmente compreendida. Mas, acima de tudo, ele julgava pactuar com outro lado encoberto. “Venho de uma linhagem familiar emotiva em excesso e deficiente em razão”, escreveu em Relato Autobiográfico.

Todo o sangue que corre em filmes como Kagemusha ou Ran, este uma obra-prima feita quando Kurosawa contava 75 anos (era sua versão para Rei Lear, de Shakespeare), revive um episódio de sua infância. Ele vira seu cachorro branco ser cortado ao meio nos trilhos de um trem. Nunca mais, por isso, suportara sushis de carne vermelha. Nunca, também por esta razão, aceitara os cachorros brancos que por toda a vida o presentearam, em substituição àquele que estimara. “Por que não me deram um cachorro preto, então?” A arte reproduziria a sensibilidade que lhe era familiar.

Certa vez, em 1975, a companhia cinematográfica Toho pediu que o cineasta listasse conselhos à juventude que desejava aprender a arte de filmar. Como prezava a escrita e sobre ela trabalhava intensamente nos filmes, ele afirmou: “Para escrever roteiros, deve-se antes estudar os grandes romances e as grandes peças teatrais que o mundo produziu. Deve-se procurar saber por que são grandes. De onde vem a emoção que se sente ao ler? O cineasta se realiza na escrita”.

A plasticidade era a outra verdade dos filmes. “Há algo que deve ser denominado beleza cinematográfica”, afirmou. “Ela precisa estar presente em um filme para que ele leve esse nome. Essa qualidade motiva a ida das pessoas ao cinema. A esperança de obter tal resultado é o que inspira o realizador a fazer a obra. A essência do cinema repousa na beleza cinematográfica.” 

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