segunda-feira, 29 de março de 2010

Grafite, cidades e cores

Publicado no site da revista Caros Amigos

Grafite, cidades e cores

Por Raul Julio

A partir da Revolução Industrial, as cidades foram se tornando grandes centros urbanos e ganhando autonomia. Como epicentro de decisões políticas e econômicas, elas se expandiram e se auto-organizaram de maneira singular e aos poucos foram criando vida própria, ditando seu ritmo e adquirindo cores. Do mosaico cultural que é formado nesses lugares, nasceram os principais movimentos artísticos pós-revolução, todos com o objetivo de fazer uma síntese do contexto urbano em suas respectivas épocas. A vivência dentro desse cenário foi decisiva para todos os âmbitos da arte e do fazer artístico, de Delacroix a Andy Warhol. E foi justamente enquanto a Pop Art de Warhol agitava Nova York, como um dos sinais da pós-modernidade, que os muros da cidade apresentaram ao mundo a mais urbana das artes.

Nascido das ruas e para as ruas, o grafite tomou conta de Manhattan no fim da década de 70. A frustração de alguns artistas com a falta de diálogo entre as suas idéias e o que se denominava arte naquele tempo forçou a busca por uma alternativa. A solução encontrada foi abandonar por algum tempo as telas de pintura e se dedicar a uma nova plataforma: a cidade. Nomes como Kenny Scharf, Keith Haring e Jean-Michel Basquiat, foram os primeiros a adotar a nova dinâmica da intervenção. Sua incorporação à cultura pop foi inevitável pois, mesmo com o desdém dos mais conservadores, ninguém queria fazer parte de uma geração que ignorasse outro Van Gogh, como disse Rene Ricard, crítico da revista Artforum e responsável pelo primeiro artigo sobre Basquiat.

No Brasil, as primeiras intervenções ocorreram em meados da década seguinte. Rui Amaral foi um daqueles que participaram ativamente dessa nova investida artística. Ele começou a grafitar por diversão e, segundo o próprio, esse é o principal motivo por ele ter se mantido fiel ao grafite durante todo esse tempo. Sua paixão pela arte de rua nasceu junto com a Bienal de 1983, na qual ele foi um dos monitores. Sob a curadoria de Walter Zanini, a Bienal de 83 trouxe para o Brasil dois dos maiores ícones do grafite (Scharf e Haring). E o convite só aconteceu porque a delegação estadunidense, com artistas renomados, se recusou a participar do evento por causa do fim da segmentação das áreas por países, forçando a organização a cogitar outros convidados. A intenção de Zanini era propor a analogia da linguagem ao invés de repetir a fórmula do agrupamento por nacionalidades. Sorte de Amaral que pôde conhecer mais de perto o trabalho dos dois artistas.

Naquela época, segundo ele, o grafite era muito mal visto. Uma conversa entre o poder público e os artistas não era possível, principalmente por causa do conservadorismo do primeiro, deixando o grafite na marginalização durante muito tempo. Só com a ajuda de Marilena Chauí, secretária da Cultura durante a gestão de Luiza Erundina, é que os grafiteiros tiveram a chance de expor seus argumentos e discutir os pontos de vista.

Apesar das mudanças que aconteceram durante essas três décadas, o grafite ainda é considerado crime segundo o artigo 65 da constituição, mas hoje, pode-se dizer que ele está a cada dia mais popular. A rapidez da reverberação do trabalho de um artista é inédita. A internet facilitou a comunicação, mas o interesse do público, principalmente dos mais jovens que passaram a cultuar as obras desses artistas e divulgar seus nomes, foi fundamental pra que houvesse uma mudança na forma com que o resto da população entende a arte. Essa nova consciência fez crescer a simpatia pelo grafite – o prefeito Gilberto Kassab foi imensamente criticado por ter pintado de cinza alguns painéis da Avenida 23 de Maio e logo voltou atrás na decisão – e, atualmente, conseguir autorização para desenvolver um trabalho está mais fácil, o que não faz muita diferença para esses artistas.

Ise e Finók, ambos grafiteiros, afirmam que o grafite só existe quando não tem permissão, afinal, é a arte de intervir em uma plataforma que não foi destinada para aquele fim. Os dois mantêm contato direto com as dores e delícias de fazer arte de rua e cresceram, embora em épocas diferentes, no bairro do Cambuci que já pode ser considerado um dos berços da nova geração do grafite paulista. Foi lá que outros dois artistas bem conhecidos também começaram, Os Gêmeos, talvez os maiores expoentes brasileiros do grafite. Convivendo no cerne dos acontecimentos Ise e Finók foram influenciados e não demorou pra que começassem a pintar e criar um estilo próprio, muito preconizado com o surgimento de novos artistas a cada dia que, ainda imaturos, acabam caindo na imitação. E como diz Finók, “São Paulo é uma cidade muito fácil de pintar, o difícil é conseguir botar uma mensagem no seu trabalho”.

O caos que inspira
A desarmonia que existe entre as suntuosas construções e o mais miserável dos barracos é o que seduz o artista e o inspira a trabalhar. Através das figuras icônicas, dos desenhos pictóricos e das cores muito vivas que o grafite desperta a atenção do público. Mas somente a conversa que existe entre o trabalho e o ambiente faz dele uma arte. Sem isso, seriam apenas desenhos.

Os paineis de Chivitz na entrada da favela de São Matheus e na Cracolândia são um bom exemplo dessa importância na concepção de um trabalho. Seus personagens fazem às vezes de anfitriões nesses lugares muitas vezes retratados como filiais do inferno. E se as figuras são um desejo de boas vindas a quem chega, também representam um convite aos moradores para que eles se aproximem da arte. Para Chivitz, o que encanta no grafite é o fato de não saber o que vai ser feito até que você esteja frente a frente com o local, ou o “elemento surpresa”, como ele mesmo gosta de chamar. Há quase 15 anos ele se dedica à arte de rua (antes disso ele era tatuador). Seus trabalhos dentro de galerias, como a exposição na Choque Cultural, são geralmente feitos em fundo rosa - seu preferido - e contêm algo de onírico e juvenil.

Exposições como essa são outro elemento que aproximaram o público do grafite. No ano passado foram diversas e pelo menos duas delas ocorreram em grandes museus da cidade. Os Gêmeos conceberam a “Vertigem” na FAAP, muito elogiada pela crítica, enquanto o MASP apostou na curadoria de Baixo Ribeiro (da Choque Cultural) para trazer seis artistas na exposição “De dentro pra fora, de fora pra dentro”, ainda em curso na capital. Titi Freak, um dos seis escolhidos, acredita que esse momento do grafite se deve a evolução natural das coisas. “O que está rolando agora é que aqueles que não aceitavam ou não acreditavam e até recriminavam nossa arte, hoje valorizam e incentivam o que a gente faz. A geração é outra e a visão da arte no atual momento também é outra”, afirma.

Formando um uníssono, os grafiteiros alegam que as galerias e museus mostram seus trabalhos como artistas plásticos, mas que o verdadeiro grafite existe única e exclusivamente nas ruas. É através delas que todos os tipos de público entram em contato com o que eles sabem fazer de melhor. Por esse motivo o grafite passou a ser reconhecido como a arte democrática que é. Não quer de nenhuma maneira se tornar elitista, corroborando a importância do trabalho desses profissionais pelas periferias de São Paulo. “Dizem que o grafite é arte de vanguarda, mas o que há de mais vanguardista é o aspecto social que ele tem. Fazer o jovem entender que ele não precisa de muito pra deixar um talento artístico aflorar e ser reconhecido por isso”, diz Rui Amaral do alto da sabedoria de quem viu um filho nascer, crescer e amadurecer diante de seus olhos.

Mesmo tendo um caráter imediatista, com as informações tendo que ser identificadas rapidamente, o grafite não dispensa a contemplação. Pela janela do carro, em meio à turbulência das avenidas, o público se depara com a arte, com um tempo restrito para assimilá-la. Por isso ela funciona como uma ferramenta antitética, que opõe a celeridade à reflexão. Sob viadutos, em prédios, museus ou muros, essa é a arte de livre figuração que remodela aspectos centrais das maiores cidades do mundo. Assim como as metrópoles construíram a capacidade de se comportar como organismos autônomos, elas também condensaram seus anseios, conflitos e mudanças em torno de um novo conceito artístico. É porque a expansão do ambiente urbano não ocorre de forma linear que o grafite é do jeito que é: a expressão das cidades em cores.

Raul Julio é estudante de Jornalismo

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